O amor romântico e o meu amor – um ensaio sobre o amor racional


O desejo de amar, que os poetas de todos os tempos se esmeram em exprimir sob mil formas sem nunca esgotar o assunto nem sequer o igualar, esse mesmo desejo que liga à posse de uma determinada pessoa à ideia de uma felicidade infinita, e uma dor inexplicável ao pensamento de não poder obtê-la, como preconizou o filósofo da dor, Arthur Schopenhauer, ainda no século 18, em seu livro Dores do Mundo, pode ser facilmente encontrado pela voragem dos séculos na literatura romântica, e mais tarde na poesia da bossa nova, musicada com excelência pelos brasileiros.

O amor descrito acima pode ser facilmente entendido como o amor romântico. Ou seja, uma espécie de sentimento impetuoso que reflete um lirismo erótico – o famoso amor sofredor – que os poetas boêmios da bossa nova, em especial Marcos Valle & Paulo Sérgio Valle, souberam expressar com maestria nas letras de suas canções, a exemplo de Preciso aprender a ser só, de 1965, que ficou eternizada na voz singular de Maria Bethânia, artista que canta como ninguém a beleza da dor do amor.

Na letra, o sofrimento causado pela ideia da perda da pessoa amada ganham os versos na canção: Ah, se eu te pudesse fazer entender; sem teu amor eu não posso viver; que sem nós dois o que resta sou eu. E adiante, em outra estrofe, a ideia de tormento é reforçada com Ah, o amor; quando é demais ao findar leva a paz.

Para entendermos o conceito de romantismo é preciso levar em conta outro conceito igualmente importante – o de historicidade. É que o vocábulo romântico vem ganhando novos significados a cada século, revelando desse jeito o processo de historicidade, inerente à semântica em determinadas línguas; isto é, desde que William Shakespeare escreveu Romeu e Julieta, no final do século 16, essa palavra vem acumulando novas cargas semânticas com o passar do tempo. E, curiosamente, em uma das maiores peças já escritas, o inventor da modernidade, contrariando o imaginário popular, não evoca o romantismo. Muito pelo contrário, na obra de Shakespeare é possível encontrar, sobretudo, uma crítica mordaz à paixão – base do amor romântico.

Se eu transformei o cintilante romantismo shakespeariano, que o leitor cultivava, em ilusões perdidas, peço desculpas, mas é que em Romeu e Julieta, Shakespeare trata de política, ordem pública, e jamais teve intenção de romantizá-la. No entanto, a humanidade o faz por séculos a fio. A peça, inclusive, fala, entre outras coisas, que a paixão é uma má conselheira. Podemos arriscar a dizer que o autor quase que demoniza a paixão, pois fala de forma direta da inconstância do jovem no amor romântico. E, talvez, por isso é que Freud, séculos depois, vai utilizar tanto a literatura como referência para as suas teorias, já que o pai da psicanálise tratava a paixão como uma emoção que pode ser destrutiva e resulta em erros de julgamento, o que, em síntese, leva a crer que o homem saudável é o homem que controla a paixão.

A peça que encanta a todos há quase cinco séculos é fruto do retrato de um homem que ainda não conhecia o amor como ele é hoje. O amor, como nós o conhecemos, nasce no século 18 e 19. Hamlet deixa isso claro ao dizer mostre-me um homem sem paixões, e eu atarei meu coração ao dele. Ou, se preferir, em outra passagem que diz que o coração humano é um jardim, você cultiva o que você quiser nele.

Se nos permitirmos fazer um recorte de Romeu e Julieta, constataremos o quão lustroso é o amor romântico. Em um único instante, um olha para o outro e, de repente, se apaixonam perdidamente, em um domingo. Ela havia conhecido Romeu há 15 minutos, e já havia se tornado o único amor de sua vida. Na madrugada, eles se declaram um para o outro. Casam no dia seguinte. Têm apenas uma relação sexual e morrem na quinta. De domingo a quinta, o amor mais perfeito da humanidade não completou uma semana, e somente teve uma relação sexual. É fácil atingir essa perfeição quando a relação não conta com o pesar dos anos, não completa bodas de ouro.

Em contraponto, emerge do passado, com uma dosagem do contexto do presente, o amor racional, isento do romantismo e de suas perdições. Esse sentimento, permeado pela racionalidade ainda que envolto de instinto e truques evolutivos, é o qual eu busco criar em mim. Quando comecei a escrever este texto, eu só tinha uma pessoa em mente, e esse alguém era você. Diferente do amor romântico, o amor racional cultiva e tem o poder de enxergar as melhores qualidades de alguém, aceitando com tranquilidade todos os defeitos que podem vir juntos.

Entendo que o amor e a relação são uma construção que leva tempo, dedicação e determinação. Não é à toa que Zygmunt Bauman, filósofo e sociólogo polonês, que nos deixou no início de 2017, diz que quando temos pressa, não conseguimos estabelecer vínculos. E é do vínculo que nasce o amor. Essa é uma das mais marcantes características da humanidade pós-moderna. Ao criar elos com alguém que amamos, nós revelamos que esse sentimento atingiu certa maturidade e por isso ele trará certa beleza que não sairá com água e sabão. E, portanto, certas promessas como a de tomar banho gelado no inverno ou ir a pé de São Paulo a Salvador farão mais sentido – uma vez que esse amor tende, sim, a ser real.

O amor racional aceita os desafios impostos pela biologia, e não nega que há mais química que poesia nesse emaranhado de impulsos, termo cunhado por Nietzsche para explicar todos os sentimentos que guardamos em nós. Desde que senti tua pele tocar na minha pele e os nossos corpos começarem a se comunicar, dentro daquele entendimento de que “bateu uma coisa de pele”, como o ardor lânguido, é possível que a ciência tenha uma explicação, como um fato evolutivo, para esse fenômeno. Cientistas explicam que o sistema imunológico busca outro complementar ao nosso, com quem possamos gerar descendentes geneticamente mais variados, com maior capacidade de resistir a doenças. No século 18, Schopenhauer vai afirmar que “todo o amor vulgar ou etéreo tem origem no instinto sexual — o seu fim é a procriação de uma determinada criança”. Ainda que amemos de verdade o nosso parceiro, o lado instintivo e evolutivo falará alto nesses momentos.

E, como ninguém tem placa na testa dizendo qual tipo de sistema imunológico tem, o jeito que o corpo inventou de perceber e comunicar isso foi o cheiro – que por sinal é uma das práticas aliadas ao beijo, insistentemente, utilizadas por mim. A reportagem sobre o amor, da dupla de repórteres Jeanne Callegari e Bruno Garattoni para a revista Superinteressante, explica ainda que a natureza criou três mecanismos cerebrais que controlam o amor nos seres humanos: luxúria, paixão, romance/ligação.

O mecanismo da luxúria (desejo sexual) está ligado à quantidade de hormônio testosterona – tanto em homens quanto em mulheres. Já o impulso da paixão é alimentado pela dopamina. E o terceiro sistema, da ligação e do companheirismo, é alimentado pela ocitocina (na mulher) e pela vasopressina (no homem). No entanto, os três sistemas são independentes. Ou seja, eu posso te amar e amar o teu sorriso, estar apaixonado por alguém há anos e sentir atração por outra pessoa que surfa no litoral norte de São Paulo, tudo ao mesmo tempo. E isso acontece de fato, pelo menos neste instante. Sim, uma confusão só. A parte complicada vem sem seguida, esses sistemas interferem uns nos outros, principalmente depois que nós experimentamos o sexo.

O sexo pode aumentar os níveis de dopamina – que provoca paixão e romance. E o orgasmo provoca a descarga de ocitocina e vasopressina – os hormônios da ligação. É por isso que biologicamente não existe sexo cem por centro sem compromisso. Nós corremos sempre o risco de acabar nos apaixonando por alguém com quem não tínhamos intenção de nos envolver.

Com o tempo, mesmo os relacionamentos que possuem o mais importante dos ingredientes para uma relação saudável – o amor racional – terão de enfrentar o desafio de lidar com a queda da produção de testosterona. É que sem esse hormônio, os casais vão perdendo a vontade de sexo. E é aí que os maiores problemas começam. Sem o mesmo encantamento de quando estavam apaixonadas, as pessoas ficam menos tolerantes aos seus parceiros, e começam a ver o outro como ele realmente é.

E é por isso que saber o que ou quem realmente queremos conosco conta muito nesse momento. Aquela história de que “é lindo quando alguém escolhe pousar ao teu lado, podendo voar. Podendo encontrar até outros ninhos, outros caminhos, escolhe ficar”. Ter sapiência para não se envolver em relacionamentos sem futuro, quando não se é mais adolescente, é uma questão tão importante que implica no nosso próprio destino. No fim das contas, o que conta mesmo são as memórias que colecionamos e com quem as compartilhamos ao longo de todo esse tempo. Ainda que dure apenas algumas décadas ou mesmo anos, Vinícius de Moraes, outra voz eternizada pela bossa nova, vai utilizar de muita sabedoria ao cravar que “que não seja imortal, posto que é chama, mas que seja infinito enquanto dure”, ao tratar do amor.

O entendimento que temos acerca do amor eterno foi produzido pela literatura do século 19, que contribuiu para a romantização da vida, já que apresenta o ideal do amor romântico; o amor perfeito como o amor de perdição, o amor que termina em morte, já que, como sentimento avassalador e, portanto, única maneira de ser perfeito, deve terminar com a morte. E não pode haver cotidiano no amor romântico. Não pode haver desgaste da relação, só pode haver paixão, platonismo. A idealização do outro.

Mas e aqueles casais que estão juntos há décadas e ainda se dizem apaixonados? Pois é, essa história pode ser a nossa, já pensou nisso? Tudo começou a ser levado a sério quando cientistas dos EUA monitoraram o cérebro de pessoas nessa situação e constaram que áreas do cérebro relacionadas à paixão e ao romance realmente se acendiam quando elas pensavam na pessoa amada. A paixão pode, sim, durar para sempre. Mas isso só acontece com algumas pessoas – e ninguém ainda sabe o porquê.

Embora o coup de foudre (amor à primeira vista) seja um fenômeno explicitamente criticado por Shakespeare, pode haver uma explicação científica para o crush instantâneo. De acordo com cientistas americanos, o amor à primeira vista pode ser uma estratégia instintiva e evolutiva no momento da escolha do melhor parceiro. No entanto, Shakespeare classifica a flechada do cupido como a ascensão de um sentimento incontrolável e altamente perigoso. É por este motivo que Schopenhauer vai dizer que todos “os poetas são obrigados a colocar os seus heróis em situações cheias de ansiedades e de tormentos, a fim de os livrarem delas: drama e poesia épica só nos mostram homens que lutam, que sofrem mil torturas, e cada romance oferece-nos em espetáculo os espasmos e as convulsões do pobre coração humano”.

Embora se envolver com alguém significa que teremos que lidar com luxúria, paixão e amor ao mesmo tempo, há ainda pelo caminho o desafio de resistir ao desejo de trair, no entanto, é possível controlar esse impulso, dizem cientistas. Por outro lado, é quase impossível resistir a outro fenômeno igualmente destrutível: o ciúme. O mais engraçado é que esse monstro de olhos verdes, como chamou Shakespeare, surgiu com o objetivo de preservar a relação monogâmica.

Apaixonados perdidamente ou envolvidos pelo mais puro amor erguido a dois, a ciência nos diz que é o amor racional, ainda que envolto de diversos fatores evolutivos, que vai prevalecer na maior parte do que construímos como relacionamentos ao longo das nossas vidas. Se você ainda estiver com ressentimento por alguém que deixou alguma má impressão sobre o amor, é hora de usar a racionalidade e cultivar um novo amor companheiro, prazeroso e, muito além disso, também racional.